sábado, 27 de março de 2010

 O Poder do Mercado Cultural (por Leonardo Brant)
O reconhecimento da cultura como atividade econômica é muito recente. Até o início do século 20 a tratávamos apenas como patrimônio simbólico. Tanto nos estudos antropológicos quanto nos sociológicos, aprendemos a enxergá-la como coisa dada, o que está impresso em nossos códigos de convivência e consolidamos como civilização.
Arrisco-me a explorar uma outra dimensão que a cultura pode assumir a partir de uma visão mais ampla e contemporânea deste conceito. Refiro-me às dinâmicas de sociabilidade, às tecnologias de convivência, ao diálogo, às conversações em redes. Sistemas de intercâmbio e interrelação reforçados pelo surgimento das novas tecnologias, mas não exclusivos aos territórios virtuais.
Imaginar e expressar o futuro. Pensar cultura como um farol voltado para as novas formas de expressão e convivência que podemos construir a partir do conhecimento disponível. A ética como princípio norteador. A consolidação da economia como ciência dominante em nosso tempo fez com que lhe subordinássemos todas as outras formas de manifestação humana como fenômenos derivativos, seguindo uma lógica e uma codificação próprias. E com a cultura não foi diferente.
E daí vem a tentação de transformar ricas manifestações culturais em commodities baratas, manuseadas de maneira rasteira e linear por profissionais reprodutores de um conjunto de regras e tecnologias que só interessam à manutenção de um perverso sistema de poder, que se sustenta sobretudo pelo domínio dos meios de produção e  distribuição de conteúdos culturais.
Mas o que é a economia senão um fenômeno cultural? O que são o dinheiro, o market share, a pontuação da bolsa de valores, senão valores simbólicos desprovidos de sentido fora de um conjunto de códigos rigorosos chamado “mercado”. Mergulhados nesse contexto, corremos o risco de perder a capacidade de desvendá-los e tornamo-nos apenas agentes de manutenção e disseminação de um sistema de valores linear, unilateral e desumano.
Nessa condição, o consumo consolida-se como a forma de expressão mais forte e presente, sobretudo nos grandes centros urbanos. A própria arte passa a ser ressignificada e vista como meio de produção e objeto de consumo. Corre, assim, o risco de perder a condição e a capacidade de revelar e traduzir a alma humana, suas contradições e riscos. De sua condição única e insubstituível de dar forma à utopia, passa a mera reprodutora de um sistema que o incapacita para o exercício desse olhar mais agudo e sensível.
O Brasil vivenciou na última década um grande salto quantitativo e qualitativo nas relações de trabalho na área cultural. Cultura, como atividade econômica, saiu do confinamento, ultrapassou fronteiras, mas ainda mantém vícios e dependências de uma atividade ligada aos poderes político e econômico.
O país entrou de forma definitiva no cardápio do entretenimento global. Um dos principais mercados das chamadas majors do cinema e da indústria fonográfica, o país vivencia a efervescência de uma nova Broadway tupiniquim, que já demonstra sinais de vitalidade. Do ponto de vista da exportação das artes e da cultura local, o momento atual nunca foi tão profícuo. Desde Paulo Coelho, um dos autores mais lidos da atualidade, até o futebol e a música, o Brasil nunca esteve tão em voga no cenário global.
O gestor cultural precisa estar atendo para valer-se dessas oportunidades. Participar ativamente do mercado da  cultura sem estar a ele subordinado é uma das questões éticas mais difíceis ligadas ao cotidiano do gestor cultural. Por isso a necessidade de investir em um conjunto de ferramentas adequadas para lidar com a administração e o marketing, por exemplo, mas não sem fazer uma incursão mais profunda na questão ética.
Não há nada que influencie mais a conformação de um produto cultural do que o seu sistema de financiamento. Presume-se, por exemplo, que um filme distribuído por uma major norte-americana teve menos liberdade artística do que um filme independente. Este, por sua vez, terá mais dificuldades de conquistar público, justamente porque as salas comerciais pertencem às grandes distribuidoras. Um bom gestor cultural precisa saber manejar essas variáveis, que são inúmeras e complexas, a ponto de arquitetar novas dinâmicas que invertam a lógica do domínio e o aprisionamento da criação pelo capital.
Atuar na atividade cultural é algo que exige conhecimento genérico e específico, ao mesmo tempo. Saber balancear uma formação humanística ampla e consistente, capaz de apreender e decodificar nuanças, especificidades e contextos, necessários para compreender melhor a teia de relações e interesses onde está inserido, em especial os políticos e econômicos, com o conhecimento técnico, que o habilite e dialogar com todas as instâncias da sociedade.
É preciso buscar meios de destrinchar conceitos ligados ao manejo da questão simbólica e apresentar cenários capazes de representar realidades complexas e diversas, em detrimento das cartilhas de formação técnica e linear.
A atividade cultural exige agentes preparados e dispostos a pensar e atuar com base em novas possibilidades, mais complexas, múltiplas e coerentes com as questões colocadas pela sociedade contemporânea. Capazes de pensar
uma nova agenda política para lidar com os desafios do mundo atual, articular setores governamentais, sociedade e mercado para atuarem alinhados em torno dessa agenda, além de desvendar a cultura como ponto de partida, como
meio de construção dessa agenda e como eixo central dos novos paradigmas de desenvolvimento.
O segredo para sair da linearidade do mercado, talvez esteja no exercício de uma abordagem multidimensional para a atividade cultural. Ao implementar um processo de natureza cultural, o gestor deve estar apto a lidar com inúmeras vertentes que, juntas, conferem ao processo a riqueza necessária para desviar-se dessas armadilhas.
Qualquer atividade cultural, do Cirque du Soleil ao maracatu rural de Pernambuco, é parte integrante deste “conjunto distintivo de atributos materiais, espirituais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou grupo” definido pela UNESCO. Cuidar dessa dimensão é essencial para que não perca sentido dentro do próprio contexto social onde foi gerada.
Cuidar da dimensão econômica, por exemplo, já exige um outro olhar, mais voltado para os processos de produção, distribuição, troca, uso ou consumo dos bens simbólicos.Que pode ser complementado com um conjunto de
instrumentos de apropriação desses bens.
Essa dimensão é complementar ao desenvolvimento artístico, à pesquisa de linguagem e à proposta estética que a atividade propõe. Que por sua vez não está desvinculada de valores éticos e morais, tampouco à sua dimensão cidadã. É preciso, sobretudo, entender esse ambiente da economia da cultura como algo em pleno processo de transformação e desenvolvimento.
Um mercado promissor, mas ainda incipiente, o que exige uma intensa articulação entre os membros dessa cadeia produtiva para a conquista de um olhar mais apurado da sociedade em relação à sua importância estratégica.
* trecho do livro O Poder da Cultura.

Sobre "Leonardo Brant " http://www.brant.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário